quinta-feira, 28 de abril de 2016

A SOBERANIA DE DEUS E O PROBLEMA DO MAL CAP. 2.3


A SOBERANIA DE DEUS E O PROBLEMA DO MAL

       Certamente a questão mais difícil de todas é como o mal pode coexistir com um Deus que é inteiramente santo e inteiramente soberano. Receio que muitos cristãos não percebam a profunda severidade deste problema. Os céticos têm chamado este problema de "o calcanhar de Aquiles do Cristianismo".
         Lembro-me claramente da primeira vez em que senti a dor por este espinhoso problema. Eu era um calouro na faculdade, e tinha decidido por Cristo havia apenas umas poucas semanas. Estava jogando pingue-pongue no salão do alojamento masculino quando, no meio de um voleio, o pensamento me atingiu: Se Deus é totalmente justo, como poderia ter criado um universo onde o mal está presente? Se todas as coisas vêm de Deus, o mal também não vem dele ?
       Então, como agora, eu percebi que o mal é um problema para a soberania de Deus. Teria o mal vindo ao mundo contra a soberana vontade de Deus? Nesse caso, então, Ele não é absolutamente soberano. Caso contrário, devemos concluir que, de alguma forma, até o mal é preordenado por Deus.
       Por anos procurei a resposta a este problema, pesquisando as obras de teólogos e filósofos. Encontrei algumas tentativas inteligentes de resolver o problema, mas, até agora, nunca encontrei uma resposta profundamente satisfatória.
          A solução mais comum que ouvimos para o dilema é uma simples referência ao livre-arbítrio do homem. Ouvimos tais declarações como "O mal entrou no mundo pela vontade livre do homem. O homem é o autor do pecado, e não Deus".
       Certamente essa declaração está de acordo com o relatório bíblico da origem do pecado. Sabemos que o homem foi criado com uma vontade livre e que o homem livremente escolheu pecar. Não foi Deus que cometeu pecado, foi o homem. Este problema ainda persiste, contudo. De onde foi que o homem contraiu a mais leve inclinação para pecar? Se ele foi criado com um desejo para pecar, então uma sombra é lançada sobre a integridade do Criador. Se ele foi criado sem nenhum desejo para pecar, então precisamos perguntar de onde veio esse desejo.
        O mistério do pecado é atado ao nosso entendimento de livre-arbítrio, do estado do homem na criação, e da soberania de Deus. A questão do livre-arbítrio é tão vital para nosso entendimento de predestinação que vamos dedicar um capítulo inteiro ao assunto. Até então, vamos restringir nosso estudo à questão do primeiro pecado do homem.
       Como puderam Adão e Eva cair? Eles foram criados bons. Poderíamos sugerir que o problema deles foi a engenhosidade de Satanás. Satanás os enganou. Ele trapaceou para que comessem o fruto proibido. Poderíamos supor que a serpente era tão escorregadia que enganou inteira e completamente nossos pais originais.
         Tal explicação suporta diversos problemas. Se Adão e Eva não perceberam o que estavam fazendo, se foram completamente enganados, então o pecado teria sido de Satanás. Mas a Bíblia deixa claro que, apesar de sua engenhosidade, a serpente falou dire­tamente em desafio aos mandamentos de Deus. Adão e Eva tinham ouvido Deus anunciando sua proibição e advertência. Eles ouviram Satanás contradizer Deus. A decisão estava bem à frente deles. Eles não poderiam apelar para a astúcia de Satanás para desculpá-los.
        Mesmo se Satanás não tivesse somente enganado, mas também forçado Adão e Eva ao pecado, ainda não estaríamos livres de nosso dilema. Se eles pudessem, com justiça, ter dito: "O diabo nos fez pecar", teríamos ainda de enfrentar o pecado do diabo. De onde veio o diabo? Como ele conseguiu cair da bondade? Quer este­jamos falando da queda do homem ou da queda de Satanás, estaremos ainda tratando de problemas de boas criaturas tor­nando-se más.
        De novo, ouvimos a explicação "fácil" que o mal veio através do livre-arbítrio do homem. Livre-arbítrio é uma coisa boa. O fato de Deus nos haver dado o livre-arbítrio não lança culpa sobre ele. Na criação, foi dada ao homem uma capacidade para pecar e uma capacidade para não pecar. Ele escolheu pecar. A questão é, "Por quê?"
       Nisto está o problema. Antes que a pessoa possa cometer um ato de pecado, ela precisa primeiro ter um desejo de realizar aquele ato. A Bíblia nos conta que as más ações provêm de maus desejos. Mas a presença de um mau desejo já é pecado. Pecamos porque somos pecadores. Nascemos com uma natureza pecaminosa. Somos criaturas decaídas. Mas Adão e Eva não foram criados decaídos. Eles não tinham natureza pecaminosa. Eram boas criaturas com uma vontade livre. Ainda assim, escolheram pecar. Por quê? Não sei. Nem encontrei ninguém ainda que saiba.
           Apesar deste problema atormentador, ainda devemos afirmar que Deus não é o autor do pecado. A Bíblia não revela as respostas para todas as nossas perguntas. Revela a natureza e o caráter de Deus. Uma coisa é absolutamente impensável, que Deus possa ser o autor ou executor do pecado.
       Mas este capítulo é sobre a soberania de Deus. Ainda ficamos com a questão seguinte: dado o fato do pecado humano, como ele se relaciona com a soberania de Deus? Se é verdade que, de alguma forma, Deus preordena tudo o que acontece, então segue-se, sem dúvida, que Deus deve ter preordenado a entrada do pecado no mundo. Isso não quer dizer que Ele forçou o acontecimento, ou que impôs o mal sobre a criação. Tudo o que significa é que Deus deve ter decidido permitir que acontecesse. Se Ele não permitisse que acontecesse, então não poderia ter acontecido, ou então Ele não é soberano.
       Nós sabemos que Deus é soberano porque sabemos que Deus é Deus. Portanto, devemos concluir que Deus preordenou o pecado. O que mais podemos concluir? Podemos concluir que a decisão de Deus de permitir que o pecado entrasse no mundo foi uma boa decisão. Isto não quer dizer que nosso pecado seja uma boa coisa, mas meramente que a permissão de Deus para que pequemos, o que é mau, é uma boa coisa. Que Deus per­mita o mal é bom, mas o mal que Ele permite ainda é mau. O envolvimento de Deus em tudo isto é perfeitamente justo. Nosso envolvimento nisso é mau. O fato de ter Deus decidido per­mitir que pecássemos não nos absolve de nossa responsabili­dade pelo pecado.
        Uma freqüente objeção que ouvimos é que, se Deus sabia de antemão, que iríamos pecar, por que nos criou? Um filósofo colocou o problema desta maneira: "Se Deus sabia que iríamos pecar e não impediu, então Ele não é nem onipotente nem soberano. Se Ele podia impedir, mas escolheu não fazê-lo, então Ele não é nem amoroso nem benevolente". Por esta aborda­gem, faz-se com que Deus pareça mau, não importa como respon­demos à pergunta.
       Precisamos assumir que Deus sabia de antemão que o homem cairia. Precisamos também assumir que Ele poderia ter agido para detê-lo. Ou Ele poderia ter escolhido não nos criar. Concedemos todas essas possibilidades hipotéticas. Basicamente, sabemos que Ele sabia que cairíamos, e que Ele foi em frente e nos criou mesmo assim. Por que isso significa que Ele não é amoroso? Ele também sabia de antemão que iria desenvolver um plano de redenção para a sua criação decaída que iria incluir uma perfeita manifestação de sua justiça e uma perfeita expressão de seu amor e misericórdia. Foi certamente amoroso da parte de Deus, predestinar a salvação de seu povo, aqueles que a Bíblia chama de "eleitos" ou escolhidos.
       Os não eleitos é que são o problema. Se algumas pessoas não são eleitas para a salvação, então parece que Deus não é tão amoroso para com elas. Para elas, parece que teria sido mais amoroso da parte de Deus não ter permitido que elas nascessem.
        Isso, de fato, pode ser o caso. Mas precisamos fazer a pergunta realmente dura: Há alguma razão pela qual um Deus justo precise ser amoroso para com uma criatura que o odeia e que se rebela constantemente contra sua divina autoridade e santidade? A objeção levantada pelo filósofo implica que Deus deve seu amor a criaturas pecadoras. Ou seja, a suposição não declarada é que Deus é obrigado a ser gracioso com pecadores. O que o filósofo ignora é que, se a graça é obrigada, ela deixa de ser graça. A própria essência da graça é que ela é imerecida. Deus sempre se reserva o direito de ter misericórdia de quem Ele tiver misericórdia. Deus pode dever justiça às pessoas, mas nunca misericórdia.
        É importante destacar uma vez mais que estes problemas se levantam para todos os cristãos que crêem num Deus soberano. Estas questões não são exclusivas de uma visão particular de predestinação.
      As pessoas discutem se Deus é suficientemente amoroso para prover um meio de salvação para todos os pecadores. Uma vez que o calvinismo restringe a salvação apenas aos eleitos, parece requerer um Deus menos amoroso. Na superfície, pelo menos, parece que uma visão não calvinista prove uma oportunidade para a salvação de um vasto número de pessoas, que não seriam salvas na visão calvinista.
    De novo, esta questão toca em assuntos que precisam ser mais amplamente desenvolvidos em capítulos posteriores. Por agora, deixe-me dizer simplesmente que, se a decisão final pela salvação de pecadores decaídos fosse deixada nas mãos dos próprios pecadores, perderíamos toda esperança de que alguém pudesse ser salvo.
    Quando consideramos o relacionamento de um Deus soberano com um mundo decaído, enfrentamos basicamente quatro opções:

1. Deus poderia decidir não prover nenhuma opor­tunidade para ninguém ser salvo.
2. Deus poderia prover uma oportunidade para todos serem salvos.
3. Deus poderia intervir diretamente e garantir a salva­ção de todas as pessoas.
4. Deus poderia intervir diretamente e garantir a salva­ção de algumas pessoas.

         Todos os cristãos imediatamente excluem a primeira opção. A maioria dos cristãos exclui a terceira. Enfrentamos o problema que Deus salva alguns e não todos. O Calvinismo responde com a quarta opção. A visão calvinista da predestinação ensina que Deus ativamente intervém nas vidas dos eleitos para ter certeza absoluta de que eles sejam salvos. É claro que o restante é convidado a Cristo e é dada a eles uma oportunidade para ser salvos, se eles quiserem. Mas o calvinismo assume que, sem uma intervenção de Deus, ninguém jamais vai querer Cristo. Deixado a si mesmo, ninguém jamais vai escolher Cristo.
        Este é precisamente o ponto da disputa. As visões não reformadas da predestinação assumem que cada criatura decaída é deixada com a capacidade de escolher Cristo. O homem não é visto como sendo tão decaído que seja necessária a direta intervenção de Deus ao grau que o Calvinismo afirma. As visões não reformadas todas deixam ao poder do homem que lance na urna o voto decisivo para seu destino definitivo. Nestas visões, a melhor opção é a segunda. Deus provê oportunidades para todos serem salvos. Mas, certamente, as oportunidades não são iguais, uma vez que vastas multidões de pessoas morrem sem jamais ouvir o Evangelho.
        O não reformado faz objeções à quarta opção porque ela limita a salvação a um seleto grupo que Deus escolhe. O não reformado faz objeções à segunda opção porque ele vê a oportunidade universal de salvação como não provendo o suficiente para salvar todos. O calvinista vê Deus fazendo muito mais pela raça humana decaída através da opção quatro do que através da opção dois. O não calvinista vê justamente o inverso. Ele pensa que dar uma oportunidade universal, embora falhe em garantir a salvação de todos, é mais benevolente do que garantir a salvação de alguns e não de outros.
        O problema indecente para o Calvinismo é visto no relacionamento entre as opções três e quatro. Se Deus pode escolher, e escolhe, garantir a salvação de alguns, por que Ele não garante a salvação de todos?
         Antes que eu tente responder a essa pergunta, deixe-me primeiro citar que esse não é só um problema calvinista. Todo cristão deve sentir o peso deste problema. Primeiro enfrentamos a pergunta: "Deus tem o poder de garantir a salvação de todos?"            Certa­mente Deus tem o poder de mudar o coração de cada pecador impenitente e trazer esse pecador a si próprio. Se faltasse a Ele esse poder, então Ele não seria soberano. Se Ele tem esse poder, por que não o usa para todos?
        O pensador não reformado geralmente responde dizendo que, se Deus impusesse seu poder sobre pessoas que não querem, estaria violando a liberdade do homem. Violar a liberdade do homem é pecar. Desde que Deus não pode pecar, não pode impor unilateralmente sua graça salvadora sobre pecadores que não querem. Forçar o pecador a querer quando o pecador não quer é violentar o pecador. A ideia é que, ao oferecer a graça do Evangelho, Deus faz tudo o que pode para ajudar o pecador a ser salvo. Ele tem o poder natural de coagir os homens, mas o uso de tal poder seria estranho à justiça de Deus.
       Isto não traz muito conforto ao pecador no inferno. O pecador no inferno pode estar perguntando: "Deus, se o senhor realmente me amou, por que não me coagiu a crer? Eu preferiria ter meu livre-arbítrio violentado do que estar aqui neste eterno lugar de tormento." Ainda assim, o apelo dos condenados não determinaria a justiça de Deus, se, de fato, fosse errado para Deus impor a si mesmo sobre a vontade do homem. A pergunta que o calvinista faz é: "O que há de errado com Deus criar a fé no coração do pecador?"
       Não é requerido de Deus que busque a permissão do pecador para fazer com o pecador o que Ele quer. O pecador não pediu para nascer no país em que nasceu, para ser filho de seus pais, nem mesmo para nascer. Também não pediu para nascer com uma natureza decaída. Todas estas coisas foram determinadas pela decisão soberana de Deus. Se Deus faz tudo isto que afeta o destino eterno do pecador, o que poderia haver de errado em ele ir um passo além e garantir a salvação do pecador? O que Jeremias queria dizer quando clamou: "Persuadiste-me, ó Senhor, e per­suadido fiquei" (Jeremias 20.7)? Jeremias certamente não convidou Deus a persuadi-lo.
        A questão continua. Por que Deus somente salva alguns? Se nós admitimos que Deus pode salvar os homens violentando suas vontades, por que então Ele não violenta a vontade de todos e traz todos à salvação? (Estou usando aqui a palavra violentar não porque eu realmente pense que exista uma violentação errada, mas porque os não calvinistas insistem no termo.)
       A única resposta que eu posso dar a esta pergunta é que eu não sei. Não tenho idéia por que Deus salva alguns e não todos. Não duvido por um momento que Deus tenha o poder de salvar todos, mas eu sei que Ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei por quê.
       Uma coisa sei. Se agrada a Deus salvar alguns e não todos, não há nada de errado com isso. Deus não está obrigado a salvar ninguém. Se Ele escolhe salvar alguns, isso de modo algum o obriga a salvar o restante. De novo, a Bíblia insiste que é divina prerrogativa de Deus ter misericórdia de quem Ele tiver misericórdia.
       O grito em alta voz que o calvinista geralmente ouve a este ponto é: "Isso não é certo!" Mas o que significa certo aqui? Se, por certo, nós queremos dizer igual, então é claro que o protesto é correto. Deus não trata todos os homens igualmente. Nada poderia ser mais claro na Bíblia que isso. Deus apareceu a Moisés de um modo que Ele não apareceu a Hamurabi. Deus deu bênçãos a Israel que não deu à Pérsia. Cristo apareceu a Paulo na estrada de Damasco de modo diferente do qual se manifestou a Pilatos. Deus simplesmente não tem tratado cada ser humano na História exatamente da mesma maneira. Até aí é óbvio.
       Provavelmente o que querem dizer por "certo" no protesto é "justo". Não parece justo que Deus escolha alguém para receber sua misericórdia enquanto outros não recebem o benefício dela.
      Para lidar com este problema, precisamos de um raciocínio apro­ximado, mas muito importante. Vamos presumir que todos os ho­mens são culpados de pecado à vista de Deus. Da massa da huma­nidade culpada, Deus soberanamente decide conceder miseri­córdia a alguns deles. O que o restante recebe? Eles recebem justiça. Os salvos recebem misericórdia e os não salvos recebem justiça. Ninguém recebe injustiça.
Misericórdia não é justiça. Mas também não é injustiça. Olhe para o seguinte gráfico:




       Existe justiça e existe não-justiça. Não-justiça inclui tudo fora da categoria da justiça. Na categoria da não-justiça encontramos dois subconceitos, injustiça e misericórdia. Misericórdia é uma boa forma de não-justiça, enquanto injustiça é uma forma má de não-justiça. No plano de salvação, Deus não faz nada mau. Ele nunca comete uma injustiça. Algumas pessoas recebem justiça, que é o que elas merecem, enquanto outras pessoas recebem mise­ricórdia. Novamente, o fato de alguém receber misericórdia não requer que outros a recebam também. Deus reserva-se o direito da clemência executiva.
        Como ser humano eu poderia preferir que Deus concedesse sua misericórdia a todos igualmente, mas não posso requerer isso. Se Deus não se agrada em dispensar sua misericórdia salvadora a todos os homens, então preciso submeter-me à sua decisão santa e justa. Deus nunca, nunca, nunca é obrigado a ser misericordioso para com os pecadores. Este é o ponto que devemos destacar, se vamos entender a inteira medida da graça de Deus.

       A questão real é por que Deus é inclinado a ser misericordioso com alguém. Sua misericórdia não é requerida, e, mesmo assim, Ele a concede gratuitamente a seu eleito. Ele a deu a Jacó de uma maneira que não deu a Esaú. Ele a deu a Pedro de uma maneira que não deu a Judas. Precisamos aprender a louvar a Deus tanto por sua misericórdia como por sua justiça. Quando Ele executa sua justiça, não está fazendo nada errado. Ele está executando sua justiça de acordo com sua retidão.
Continua...
R. C. Sproul

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