terça-feira, 5 de abril de 2016

ELEITOS DE DEUS - A LUTA (CAPÍTULO 1)


A LUTA

       Futebol. Pastel. Bolo de fubá. Cafezinho. Estas coisas são bem brasileiras. Para completar o conjunto, é preciso acrescentar o provérbio: "Religião e política não se discutem".
       Provérbios existem para ser desrespeitados. Talvez nenhuma regra seja quebrada mais freqüentemente do que essa a respeito de não discutir religião e política. Repetidamente embarcamos em tais discussões. E, quando o assunto muda para religião, freqüentemente gira em torno da questão da predestinação. É triste dizer que, muitas vezes, isso significa o fim da discussão e o começo da briga, produzindo mais calor do que luz.
         Discutir sobre predestinação é virtualmente irresistível. O assunto é tão saboroso! Proporciona uma oportunidade para debate a respeito de todas as coisas filosóficas. Quando a questão explode, subitamente nos tornamos superpatrióticos, guardando a árvore da liberdade humana com mais zelo e tenacidade do que Patrick Henry jamais sonhou. A imagem de um Deus todo-poderoso fazendo escolhas por nós, e talvez contra nós, nos faz gritar: "Dá-me o livre-arbítrio ou então a morte!"
       A própria palavra predestinação tem uma aura ameaçadora. E ligada à noção desesperançada de fatalidade e, de alguma maneira, sugere que, dentro de seus limites, somos reduzidos a marionetes insignificantes. A palavra evoca visões de uma deidade diabólica que faz jogos caprichosos com nossas vidas. Parecemos estar sujeitos ao ímpeto de horríveis decretos que foram solidamente fixados muito antes de nascermos.         Melhor seria se nossa vida estivesse escrita nas estrelas, pois assim, pelo menos, poderíamos encontrar dicas sobre nosso destino no horóscopo diário.
       Acrescente-se ao horror da palavra predestinação a imagem pública de seu mais famoso mestre, João Calvino, e muito maior será o abalo.
        Vemos Calvino retratado como um tirano de rosto duro e impla­cável, um Ichabod Crane do século 16, que encontrou diabólico prazer em queimar recalcitrantes heréticos. Isso é suficiente para fa­zer com que nos retiremos completamente da discussão, e reafirme­mos nosso compromisso de nunca discutir religião e política.
      Sendo um assunto que as pessoas consideram tão desagradável, é absolutamente incrível que cheguemos a discuti-lo. Por que falamos dele? Por apreciarmos coisas desagradáveis? É claro que não. Nós o discutimos porque não podemos evitá-lo. É uma doutrina bem estabelecida na Bíblia. Falamos sobre predestinação porque a Bíblia fala sobre predestinação. Se queremos construir nossa teologia sobre a Bíblia, batemos de frente com este conceito. Logo descobrimos que João Calvino não o inventou.
     Virtualmente, todas as igrejas cristãs têm alguma doutrina formal sobre predestinação. Para ser exato, a doutrina da predestinação encontrada na Igreja Católica Romana é diferente da doutrina da Igreja Presbiteriana. Os luteranos têm uma visão do assunto diferente da visão dos episcopais.
        O fato de haver visões tão variadas e abundantes da predestinação somente dá suporte ao fato de que, se somos bíblicos em nossa maneira de pensar, precisamos ter alguma doutrina de predestinação. Não podemos ignorar passagens tão conhecidas como:
 "...assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos salvos e irrepreensíveis perante ele, e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade..." 
(Efésios 1.4-5).

"...nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as cousas conforme o conselho da sua vontade..." 
(Efésios 1.11).

"Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja 
o primogênito entre muitos irmãos"
 (Romanos 8.29).

      Se pretendemos ser bíblicos, a questão não é se devemos ter uma doutrina de predestinação ou não, mas que tipo devemos abraçar. Se a Bíblia é a Palavra de Deus e não mera especulação humana, e se Deus, Ele mesmo, declara que existe tal coisa cha­mada predestinação, então segue-se inevitavelmente que deve­mos abraçar alguma doutrina de predestinação.
       Se vamos seguir esta linha de pensamento, então é claro que devemos avançar mais um passo. Não é suficiente que tenhamos apenas uma visão qualquer de predestinação. E nosso dever procurar a visão correta da predestinação, para que não sejamos culpados de distorcer ou ignorar a Palavra de Deus. É aqui que a verdadeira luta começa, a luta para juntar cuidadosamente tudo que a Bíblia ensina sobre esta matéria.
       Minha luta com a predestinação começou cedo em minha vida cristã. Eu conheci um professor de filosofia na faculdade que era um calvinista convicto. Ele apresentou a assim chamada visão "reformada" da predestinação. Não gostei dela. Definitivamente não gostei dela. Lutei com unhas e dentes contra ela durante todo o tempo da faculdade.
      Formei-me não persuadido da visão reformada ou calvinista da predestinação, para ir em seguida a um seminário que incluía entre seus preletores o rei dos calvinistas, John H. Gerstner. Gerstner é para a predestinação o que Einstein é para a física ou o que Arnold Palmer é para o golfe. Seria melhor eu ter desafiado Einstein sobre a teoria da relatividade, ou ter entrado numa partida com Palmer, do que enfrentar Gerstner. Mas... os tolos se apressam no caminho que os anjos temem pisar.
       Desafiei Gerstner na classe seguidamente, tornando-me um incômodo total. Resisti por bem mais que um ano. Minha rendição final veio em estágios. Estágios dolorosos. Começou quando fui trabalhar como pastor estudante numa igreja. Escrevi um bilhete para mim mesmo, que conservei num lugar onde sempre podia ver:

VOCÊ PRECISA CRER, PREGAR E ENSINAR O QUE A BÍBLIA DIZ QUE É VERDADE, E NÃO O QUE VOCÊ QUER QUE A BÍBLIA DIGA QUE É VERDADE.

      O bilhete me assustava. Minha crise final veio em meu último ano. Eu fazia um curso com direito a três créditos, estudando sobre Jonathan Edwards. Passamos o semestre estudando o livro mais famoso de Edwards, A Liberdade da Vontade, sob a tutela de Gerstner. Ao mesmo tempo eu fazia um curso de exegese grega no livro de Romanos. Eu era o único aluno nesse curso, sozinho com o professor de Novo Testamento. Eu não tinha onde me esconder.
     A combinação foi demais para mim. Gerstner, Edwards, o professor de Novo Testamento e, sobretudo, o apóstolo Paulo, eram um time formidável demais para eu enfrentar. O nono capítulo de Romanos foi minha tábua de salvação. Eu simplesmente não pude evitar o ensinamento do apóstolo naquele capítulo. Relutantemente, suspirei e me rendi, mas com minha cabeça, e não com meu coração. "Tudo bem, creio nestas coisas, mas não preciso gostar delas!"
      Logo descobri que Deus nos criou de maneira tal que o coração deve seguir a cabeça. Eu não podia, com impunidade, amar alguma coisa com minha cabeça e odiá-la com meu coração. Uma vez que comecei a ver a sagacidade da doutrina e suas mais amplas implicações, meus olhos foram abertos para a generosidade da graça e para o grande conforto da soberania de Deus. Comecei a gostar da doutrina pouco a pouco, até que explodiu na minha alma que a doutrina revelava a profundidade e as riquezas da misericórdia de Deus.
       Eu não mais temia os demônios do fatalismo, ou o desagradável pensamento que eu estava sendo reduzido à condição de marionete. Agora eu me alegrava num gracioso Salvador, o único que era imortal e invisível, o único Deus sábio.
   Dizem que não há nada mais desagradável do que um bêbado convertido. Experimente discutir com um arminiano convertido. Os arminianos convertidos tendem a tornar-se calvinistas inflamados, zelosos pela causa da predestinação. Você está lendo a obra de um convertido assim.
    Minha luta tem me ensinado algumas coisas ao longo do caminho. Aprendi, por exemplo, que nem todos os cristãos são tão zelosos a respeito da predestinação como eu sou. Há homens melhores do que eu que não compartilham de minhas conclusões. Tenho aprendido que muitos entendem mal a predestinação. Tenho também aprendido a dor de estar errado.
      Quando ensino a doutrina da predestinação, freqüentemente fico frustrado por causa daqueles que obstinadamente se recusam a submeter-se a ela. Tenho vontade de gritar: "Vocês não entendem que estão resistindo à Palavra de Deus?" Neste caso, sou culpado de pelo menos um entre dois pecados possíveis. Se meu entendimento de predestinação é correto, então, na melhor das hipóteses, estou sendo impaciente com pessoas que estão meramente lutando como eu uma vez lutei, e, na pior das hipóteses, estou sendo arrogante e condescendente em relação àqueles que discordam de mim.
      Se meu entendimento de predestinação não é correto, então meu pecado é composto, uma vez que eu estaria difamando os santos que, por se oporem ao meu ponto de vista, estão defendendo os anjos. Então, os riscos são altos para mim, na questão.
        A luta a respeito da predestinação é muito mais confusa porque as maiores cabeças na história da Igreja têm discordado a respeito dela. Eruditos e líderes cristãos, do passado e do presente, têm tomado diferentes posições. Uma rápida olhada na história da Igreja revela que o debate a respeito da predestinação não é entre liberais e conservadores, ou entre crentes e não crentes. É um debate entre crentes, entre cristãos piedosos e fervorosos.
        Pode ser útil ver como os velhos mestres do passado se alinharam nesta questão.

Visão "reformada"
Visões oponentes
Sto. Agostinho
Pelágio
Sto. Tomás de Aquino
Armínio
Martinho Lutero
Filipe Melanchton
João Calvino
João Wesley
Jonathan Edwards
Charles Finney

     Pode parecer que eu esteja querendo trapacear. Estes pensadores, que são mais amplamente olhados como os titãs da erudição cristã clássica, tendem em peso para o lado reformado. Estou persuadido, contudo, de que este é um fato da história que não pode ser ignorado. Para dizer a verdade, é possível que Agosti­nho, Aquino, Lutero, Calvino e Edwards possam estar errados sobre o assunto. Estes homens certamente discordam uns dos outros em outros pontos da doutrina. Não são infalíveis, nem individualmente nem coletivamente.
     Não podemos determinar a verdade contando narizes. Os grandes pensadores do passado podem estar errados. Mas é importante para nós vermos que a doutrina da predestinação não foi inventada por João Calvino. Não há nada na visão de Calvino sobre a predestinação que não tenha sido proposto anteriormente por Lutero, e por Agostinho antes dele. Mais tarde, o luteranismo não seguiu a Lutero neste assunto, mas a Melanchthon, que alterou seus pontos de vista após a morte de Lutero. E também digno de nota que, em seu famoso tratado sobre teologia, As Institutas da Religião Cristã, João Calvino escreveu escassamente sobre o assunto. Lutero escreveu mais sobre predestinação do que Calvino.
      Deixando de lado a lição de história, devemos levar a sério o fato de que estes homens cultos concordaram neste difícil assunto. Uma vez mais, o fato de eles terem concordado não prova o caso a favor da predestinação. Eles poderiam estar errados. Mas esse fato atrai a nossa atenção. Não podemos dispensar a visão reformada como sendo uma noção peculiarmente presbiteriana. Eu sei que durante a minha grande luta com a predestinação, estive grandemente perturbado com as vozes unificadas dos titãs da erudição cristã clássica neste ponto. Mais uma vez, eles não são infalíveis, mas merecem nosso respeito e nossa atenção.
       Entre os líderes cristãos contemporâneos, encontramos uma lista mais equilibrada entre concordância e discordância. (Tenha em mente que estamos falando aqui em termos gerais, e que existem significativos pontos de diferença entre os que estão de cada lado.)

Visão "reformada"
Visões oponentes
Francis Schaeffer
C. S. Lewis
Cornelius Van Til
Norman Geisler
Roger Nicole
John W. Montgomery
James M. Boice
Clark Pinnock
Philip Hughes
Billy Graham

        Não sei onde Bill Bright, Chuck Swindoll, Pat Robertson e uma série de outros líderes se posicionam neste ponto. Jimmy Swaggart deixou claro que ele considera a visão reformada uma heresia demoníaca. Seus ataques à doutrina têm sido menos do que sóbrios. Eles não refletem o cuidado e o fervor dos homens listados acima, na coluna dos "oponentes". São todos grandes líderes, cu­jas visões são dignas de nossa cuidadosa atenção.

       Minha esperança é que todos continuemos a lutar. Nunca devemos supor que já chegamos. Ainda assim, não há virtude no ceticismo absoluto. Olhamos com olhos preconceituosos aqueles que estão sempre aprendendo, mas nunca chegam ao conhecimento da verdade. Deus se deleita com homens e mulheres de convicção. E claro que Ele se preocupa que nossas convicções estejam de acordo com a verdade. Lute comigo, pois, enquanto embarcamos na difícil, mas, espero, proveitosa viagem no exame da doutrina da predestinação.
Continua ....

R. C. Sproul

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