A LUTA
Futebol.
Pastel. Bolo de fubá. Cafezinho. Estas coisas são bem brasileiras. Para
completar o conjunto, é preciso acrescentar o provérbio: "Religião e
política não se discutem".
Provérbios
existem para ser desrespeitados. Talvez nenhuma regra seja quebrada mais
freqüentemente do que essa a respeito de não discutir religião e política.
Repetidamente embarcamos em tais discussões. E, quando o assunto muda para
religião, freqüentemente gira em torno da questão da predestinação. É triste
dizer que, muitas vezes, isso significa o fim da discussão e o começo da briga,
produzindo mais calor do que luz.
Discutir
sobre predestinação é virtualmente irresistível. O assunto é tão saboroso!
Proporciona uma oportunidade para debate a respeito de todas as coisas
filosóficas. Quando a questão explode, subitamente nos tornamos
superpatrióticos, guardando a árvore da liberdade humana com mais zelo e
tenacidade do que Patrick Henry jamais sonhou. A imagem de um Deus
todo-poderoso fazendo escolhas por nós, e talvez contra nós, nos faz gritar:
"Dá-me o livre-arbítrio ou então a morte!"
A própria
palavra predestinação tem uma aura ameaçadora. E ligada à noção
desesperançada de fatalidade e, de alguma maneira, sugere que, dentro de seus
limites, somos reduzidos a marionetes insignificantes. A palavra evoca visões
de uma deidade diabólica que faz jogos caprichosos com nossas vidas. Parecemos
estar sujeitos ao ímpeto de horríveis decretos que foram solidamente fixados
muito antes de nascermos. Melhor seria se nossa vida estivesse escrita nas
estrelas, pois assim, pelo menos, poderíamos encontrar dicas sobre nosso
destino no horóscopo diário.
Acrescente-se
ao horror da palavra predestinação a imagem pública de seu mais famoso
mestre, João Calvino, e muito maior será o abalo.
Vemos
Calvino retratado como um tirano de rosto duro e implacável, um Ichabod Crane
do século 16, que encontrou diabólico prazer em queimar recalcitrantes
heréticos. Isso é suficiente para fazer com que nos retiremos completamente da
discussão, e reafirmemos nosso compromisso de nunca discutir religião e
política.
Sendo um
assunto que as pessoas consideram tão desagradável, é absolutamente incrível
que cheguemos a discuti-lo. Por que falamos dele? Por apreciarmos coisas
desagradáveis? É claro que não. Nós o discutimos porque não podemos evitá-lo. É
uma doutrina bem estabelecida na Bíblia. Falamos sobre predestinação porque a
Bíblia fala sobre predestinação. Se queremos construir nossa teologia sobre a
Bíblia, batemos de frente com este conceito. Logo descobrimos que João Calvino
não o inventou.
Virtualmente,
todas as igrejas cristãs têm alguma doutrina formal sobre predestinação. Para
ser exato, a doutrina da predestinação encontrada na Igreja Católica Romana é
diferente da doutrina da Igreja Presbiteriana. Os luteranos têm uma visão do
assunto diferente da visão dos episcopais.
O fato de
haver visões tão variadas e abundantes da predestinação somente dá suporte ao
fato de que, se somos bíblicos em nossa maneira de pensar, precisamos ter
alguma doutrina de predestinação. Não podemos ignorar passagens tão conhecidas
como:
"...assim como
nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos salvos e
irrepreensíveis perante ele, e em amor nos predestinou para ele, para a adoção
de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade..."
(Efésios 1.4-5).
"...nele,
digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito
daquele que faz todas as cousas conforme o conselho da sua vontade..."
(Efésios
1.11).
"Porquanto aos
que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de
seu Filho, a fim de que ele seja
o primogênito entre muitos irmãos"
(Romanos
8.29).
Se
pretendemos ser bíblicos, a questão não é se devemos ter uma doutrina de
predestinação ou não, mas que tipo devemos abraçar. Se a Bíblia é a Palavra de
Deus e não mera especulação humana, e se Deus, Ele mesmo, declara que existe
tal coisa chamada predestinação, então segue-se inevitavelmente que devemos
abraçar alguma doutrina de predestinação.
Se vamos
seguir esta linha de pensamento, então é claro que devemos avançar mais um
passo. Não é suficiente que tenhamos apenas uma visão qualquer de
predestinação. E nosso dever procurar a visão correta da predestinação, para
que não sejamos culpados de distorcer ou ignorar a Palavra de Deus. É aqui que
a verdadeira luta começa, a luta para juntar cuidadosamente tudo que a Bíblia
ensina sobre esta matéria.
Minha luta
com a predestinação começou cedo em minha vida cristã. Eu conheci um professor
de filosofia na faculdade que era um calvinista convicto. Ele apresentou a
assim chamada visão "reformada" da predestinação. Não gostei dela.
Definitivamente não gostei dela. Lutei com unhas e dentes contra ela durante
todo o tempo da faculdade.
Formei-me
não persuadido da visão reformada ou calvinista da predestinação, para ir em
seguida a um seminário que incluía entre seus preletores o rei dos calvinistas,
John H. Gerstner. Gerstner é para a predestinação o que Einstein é para a
física ou o que Arnold Palmer é para o golfe. Seria melhor eu ter desafiado
Einstein sobre a teoria da relatividade, ou ter entrado numa partida com
Palmer, do que enfrentar Gerstner. Mas... os tolos se apressam no caminho que
os anjos temem pisar.
Desafiei
Gerstner na classe seguidamente, tornando-me um incômodo total. Resisti por bem
mais que um ano. Minha rendição final veio em estágios. Estágios dolorosos.
Começou quando fui trabalhar como pastor estudante numa igreja. Escrevi um
bilhete para mim mesmo, que conservei num lugar onde sempre podia ver:
VOCÊ
PRECISA CRER, PREGAR E ENSINAR O QUE A BÍBLIA DIZ QUE É VERDADE, E NÃO O QUE
VOCÊ QUER QUE A BÍBLIA DIGA QUE É VERDADE.
O bilhete me
assustava. Minha crise final veio em meu último ano. Eu fazia um curso com
direito a três créditos, estudando sobre Jonathan Edwards. Passamos o semestre
estudando o livro mais famoso de Edwards, A Liberdade da Vontade, sob a
tutela de Gerstner. Ao mesmo tempo eu fazia um curso de exegese grega no livro
de Romanos. Eu era o único aluno nesse curso, sozinho com o professor de Novo
Testamento. Eu não tinha onde me esconder.
A combinação
foi demais para mim. Gerstner, Edwards, o professor de Novo Testamento e,
sobretudo, o apóstolo Paulo, eram um time formidável demais para eu enfrentar.
O nono capítulo de Romanos foi minha tábua de salvação. Eu simplesmente não
pude evitar o ensinamento do apóstolo naquele capítulo. Relutantemente,
suspirei e me rendi, mas com minha cabeça, e não com meu coração. "Tudo
bem, creio nestas coisas, mas não preciso gostar delas!"
Logo
descobri que Deus nos criou de maneira tal que o coração deve seguir a cabeça.
Eu não podia, com impunidade, amar alguma coisa com minha cabeça e odiá-la com
meu coração. Uma vez que comecei a ver a sagacidade da doutrina e suas mais
amplas implicações, meus olhos foram abertos para a generosidade da graça e
para o grande conforto da soberania de Deus. Comecei a gostar da doutrina pouco
a pouco, até que explodiu na minha alma que a doutrina revelava a profundidade
e as riquezas da misericórdia de Deus.
Eu não mais
temia os demônios do fatalismo, ou o desagradável pensamento que eu estava
sendo reduzido à condição de marionete. Agora eu me alegrava num gracioso
Salvador, o único que era imortal e invisível, o único Deus sábio.
Dizem que
não há nada mais desagradável do que um bêbado convertido. Experimente discutir
com um arminiano convertido. Os arminianos convertidos tendem a tornar-se calvinistas
inflamados, zelosos pela causa da predestinação. Você está lendo a obra de um
convertido assim.
Minha luta
tem me ensinado algumas coisas ao longo do caminho. Aprendi, por exemplo, que
nem todos os cristãos são tão zelosos a respeito da predestinação como eu sou.
Há homens melhores do que eu que não compartilham de minhas conclusões. Tenho
aprendido que muitos entendem mal a predestinação. Tenho também aprendido a dor
de estar errado.
Quando
ensino a doutrina da predestinação, freqüentemente fico frustrado por causa
daqueles que obstinadamente se recusam a submeter-se a ela. Tenho vontade de
gritar: "Vocês não entendem que estão resistindo à Palavra de Deus?"
Neste caso, sou culpado de pelo menos um entre dois pecados possíveis. Se meu
entendimento de predestinação é correto, então, na melhor das hipóteses, estou
sendo impaciente com pessoas que estão meramente lutando como eu uma vez lutei,
e, na pior das hipóteses, estou sendo arrogante e condescendente em relação
àqueles que discordam de mim.
Se meu
entendimento de predestinação não é correto, então meu pecado é composto, uma
vez que eu estaria difamando os santos que, por se oporem ao meu ponto de
vista, estão defendendo os anjos. Então, os riscos são altos para mim, na
questão.
A luta a
respeito da predestinação é muito mais confusa porque as maiores cabeças na
história da Igreja têm discordado a respeito dela. Eruditos e líderes cristãos,
do passado e do presente, têm tomado diferentes posições. Uma rápida olhada na
história da Igreja revela que o debate a respeito da predestinação não é entre
liberais e conservadores, ou entre crentes e não crentes. É um debate entre
crentes, entre cristãos piedosos e fervorosos.
Pode ser
útil ver como os velhos mestres do passado se alinharam nesta questão.
Visão
"reformada"
|
Visões
oponentes
|
Sto.
Agostinho
|
Pelágio
|
Sto.
Tomás de Aquino
|
Armínio
|
Martinho
Lutero
|
Filipe
Melanchton
|
João
Calvino
|
João
Wesley
|
Jonathan
Edwards
|
Charles
Finney
|
Pode parecer
que eu esteja querendo trapacear. Estes pensadores, que são mais amplamente olhados como os titãs da erudição cristã clássica, tendem em peso para o lado reformado. Estou persuadido, contudo, de que este é um fato da história que não
pode ser ignorado. Para dizer a verdade, é possível que Agostinho, Aquino,
Lutero, Calvino e Edwards possam estar errados sobre o assunto. Estes homens
certamente discordam uns dos outros em outros pontos da doutrina. Não são
infalíveis, nem individualmente nem coletivamente.
Não podemos
determinar a verdade contando narizes. Os grandes pensadores do passado podem
estar errados. Mas é importante para nós vermos que a doutrina da predestinação
não foi inventada por João Calvino. Não há nada na visão de Calvino sobre a
predestinação que não tenha sido proposto anteriormente por Lutero, e por
Agostinho antes dele. Mais tarde, o luteranismo não seguiu a Lutero neste
assunto, mas a Melanchthon, que alterou seus pontos de vista após a morte de
Lutero. E também digno de nota que, em seu famoso tratado sobre teologia, As
Institutas da Religião Cristã, João Calvino escreveu escassamente sobre o
assunto. Lutero escreveu mais sobre predestinação do que Calvino.
Deixando de
lado a lição de história, devemos levar a sério o fato de que estes homens
cultos concordaram neste difícil assunto. Uma vez mais, o fato de eles terem
concordado não prova o caso a favor da predestinação. Eles poderiam estar
errados. Mas esse fato atrai a nossa atenção. Não podemos dispensar a visão
reformada como sendo uma noção peculiarmente presbiteriana. Eu sei que durante
a minha grande luta com a predestinação, estive grandemente perturbado com as
vozes unificadas dos titãs da erudição cristã clássica neste ponto. Mais uma
vez, eles não são infalíveis, mas merecem nosso respeito e nossa atenção.
Entre os
líderes cristãos contemporâneos, encontramos uma lista mais equilibrada entre
concordância e discordância. (Tenha em mente que estamos falando aqui em termos
gerais, e que existem significativos pontos de diferença entre os que estão de
cada lado.)
Visão
"reformada"
|
Visões
oponentes
|
Francis
Schaeffer
|
C. S.
Lewis
|
Cornelius
Van Til
|
Norman
Geisler
|
Roger
Nicole
|
John W.
Montgomery
|
James M.
Boice
|
Clark
Pinnock
|
Philip
Hughes
|
Billy
Graham
|
Não sei onde
Bill Bright, Chuck Swindoll, Pat Robertson e uma série de outros líderes se
posicionam neste ponto. Jimmy Swaggart deixou claro que ele considera a visão
reformada uma heresia demoníaca. Seus ataques à doutrina têm sido menos do que
sóbrios. Eles não refletem o cuidado e o fervor dos homens listados acima, na
coluna dos "oponentes". São todos grandes líderes, cujas visões são
dignas de nossa cuidadosa atenção.
Minha
esperança é que todos continuemos a lutar. Nunca devemos supor que já chegamos.
Ainda assim, não há virtude no ceticismo absoluto. Olhamos com olhos
preconceituosos aqueles que estão sempre aprendendo, mas nunca chegam ao
conhecimento da verdade. Deus se deleita com homens e mulheres de convicção. E
claro que Ele se preocupa que nossas convicções estejam de acordo com a
verdade. Lute comigo, pois, enquanto embarcamos na difícil, mas, espero,
proveitosa viagem no exame da doutrina da predestinação.
Continua ....
R. C. Sproul
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