Na bíblia há várias passagens que
contêm expressões iguais ou semelhantes a esta: “Não toque no ungido do Senhor”, como: “A ninguém permitiu que os
oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu a reis, dizendo: Não toqueis nos
meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas” (1 Cr 16.21-22; cf. Sl
105.15). Mas o trecho mais conhecido é aquele em que Davi, pressionado por seu
exército a aproveitar a oportunidade de matar Saul na caverna, respondeu: “O
Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda
a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor” (1 Sm 24.6)
Essa relutância de Davi em matar Saul
por esse ser o ungido do Senhor tem sido interpretado por muitos evangélicos
como um princípio bíblico aplicável a líderes eclesiásticos de nossos dias.
Esses evangélicos consideram que pastores, bispos e apóstolos sejam ungidos do
Senhor e que, portanto, não se pode levantar a mão contra eles. A unção do
Senhor funcionaria como uma espécie de proteção e imunidade concedida por Deus.
Ir contra esses supostos ungidos seria ir contra o próprio Deus. Mas será que é
isso mesmo o que a Bíblia ensina?
A expressão “ungido do Senhor”, usada
nas Escrituras em referência aos reis de Israel, advém do fato de que esses
monarcas eram oficialmente escolhidos e designados por Deus para ocupar o cargo
mediante a unção feita por um juiz ou profeta.
Davi não queria matar Saul porque
reconhecia que esse, mesmo de forma indigna, ocupava um cargo designado por
Deus. Davi não queria ser culpado de matar alguém que recebera a unção real.
Mas o que não se pode ignorar é que esse
respeito pela vida de seu opositor não impediu Davi de confrontar Saul nem de
causar o rei de injustiça e perversidade por persegui-lo sem causa (24.15).
Davi não queria matar Saul, mas pediu a Deus, diante de todo o exército de
Israel, que agisse como juiz contra o rei e castigasse Saul, vingando a ele
mesmo (v.12). Davi também dizia a seus aliados que a hora de Saul estava por
chegar, pois o próprio Deus haveria de mata-lo por seus pecados (26.10).
Em resumo, Davi não desejava ser o
algoz do ímpio rei Saul pelo fato de esse ter sido ungido rei pelo profeta
Samuel. Todavia, isso não impediu Davi de enfrentar Saul, confrontá-lo, invocar
o juízo e a vingança de Deus contra ele e entrega-lo às mãos divinas para que,
a seu tempo, o Senhor o castigasse devidamente por seus pecados.
Diante disso, como pode alguém tomar
a postura de Davi em relação a Saul como base para esse estranho conceito de
que não se pode questionar, confrontar, contradizer e mesmo enfrentar com
firmeza autoridades eclesiásticas que se mostram repreensíveis na doutrina e na
prática?
Não há dúvida de que nossos líderes
espirituais merecem todo o nosso respeito e confiança, e que devemos acatar a
autoridade com que foram revestidos – enquanto, é claro, estiverem submissos à
Palavra de Deus, pregando a verdade e andando de maneira digna, honesta e
insuspeita.
O que impressiona mesmo é o fato de os
apóstolos de Jesus Cristo nunca terem recorrido à “imunidade da unção” ao serem
acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios crentes. O melhor exemplo
é o do próprio Paulo, ungido por Deus para ser apóstolo dos gentios. Quantos
sofrimentos ele não passou nas mãos dos crentes da igreja de Corinto, seus
próprios filhos na fé? Reproduzo apenas uma passagem de sua primeira carta a
eles, na qual revela toda a ironia, o veneno e o sarcasmo com que o tratavam:
“Já
estais fartos! Já estais ricos! Sem nós reinais! E quisera reinásseis para que
também nós viéssemos a reinar convosco! Porque tenho para mim, que Deus a nós,
apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois somos feitos
espetáculo ao mundo, aos anjos, e aos homens. Nós somos loucos por amor de
Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós ilustres, e nós
vis. Até esta presente hora sofremos fome, e sede, e estamos nus, e recebemos
bofetadas, e não temos pousada certa, e nos afadigamos, trabalhando com nossas
próprias mãos. Somos injuriados, e bendizemos; somos perseguidos, e sofremos; somos
blasfemados, e rogamos; até ao presente temos chegado a ser como o lixo deste
mundo, e como a escória de todos. Não escrevo estas coisas para vos
envergonhar; mas admoesto-vos como meus filhos amados. Porque ainda que
tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu
pelo evangelho vos gerei em Jesus Cristo. Admoesto-vos, portanto, a que sejais
meus imitadores” (1 Co 4.8-16)
Por que essa queija de Paulo não se
encontra uma repreensão tipo: “Como vocês
ousam se levantar contra o ungido do Senhor?”.
Uma vez criticados ou questionados,
os verdadeiros ungidos para o trabalho pastoral não reagem silenciando as
ovelhas com um mero “Não me toque porque
sou ungido do Senhor”, mas com trabalho, argumentos, verdades e
sinceridade. “Não toque no ungido do
Senhor” é apelação de quem não tem argumento nem exemplo para dar como
resposta.
Augustus Nicodemus
Livro: Polêmicas na Igreja
Resumo: pensamentos&teologia
Capítulo 3
Muito bom, mas o Silas n~´ao vai gostar!
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