sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

‘NÃO TOQUE NO UNGIDO DO SENHOR”

Na bíblia há várias passagens que contêm expressões iguais ou semelhantes a esta: “Não toque no ungido do Senhor”, como: “A ninguém permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu a reis, dizendo: Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas” (1 Cr 16.21-22; cf. Sl 105.15). Mas o trecho mais conhecido é aquele em que Davi, pressionado por seu exército a aproveitar a oportunidade de matar Saul na caverna, respondeu: O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor” (1 Sm 24.6)
Essa relutância de Davi em matar Saul por esse ser o ungido do Senhor tem sido interpretado por muitos evangélicos como um princípio bíblico aplicável a líderes eclesiásticos de nossos dias. Esses evangélicos consideram que pastores, bispos e apóstolos sejam ungidos do Senhor e que, portanto, não se pode levantar a mão contra eles. A unção do Senhor funcionaria como uma espécie de proteção e imunidade concedida por Deus. Ir contra esses supostos ungidos seria ir contra o próprio Deus. Mas será que é isso mesmo o que a Bíblia ensina?
A expressão “ungido do Senhor”, usada nas Escrituras em referência aos reis de Israel, advém do fato de que esses monarcas eram oficialmente escolhidos e designados por Deus para ocupar o cargo mediante a unção feita por um juiz ou profeta.
Davi não queria matar Saul porque reconhecia que esse, mesmo de forma indigna, ocupava um cargo designado por Deus. Davi não queria ser culpado de matar alguém que recebera a unção real.
Mas o que não se pode ignorar é que esse respeito pela vida de seu opositor não impediu Davi de confrontar Saul nem de causar o rei de injustiça e perversidade por persegui-lo sem causa (24.15). Davi não queria matar Saul, mas pediu a Deus, diante de todo o exército de Israel, que agisse como juiz contra o rei e castigasse Saul, vingando a ele mesmo (v.12). Davi também dizia a seus aliados que a hora de Saul estava por chegar, pois o próprio Deus haveria de mata-lo por seus pecados (26.10).
Em resumo, Davi não desejava ser o algoz do ímpio rei Saul pelo fato de esse ter sido ungido rei pelo profeta Samuel. Todavia, isso não impediu Davi de enfrentar Saul, confrontá-lo, invocar o juízo e a vingança de Deus contra ele e entrega-lo às mãos divinas para que, a seu tempo, o Senhor o castigasse devidamente por seus pecados.
Diante disso, como pode alguém tomar a postura de Davi em relação a Saul como base para esse estranho conceito de que não se pode questionar, confrontar, contradizer e mesmo enfrentar com firmeza autoridades eclesiásticas que se mostram repreensíveis na doutrina e na prática?
Não há dúvida de que nossos líderes espirituais merecem todo o nosso respeito e confiança, e que devemos acatar a autoridade com que foram revestidos – enquanto, é claro, estiverem submissos à Palavra de Deus, pregando a verdade e andando de maneira digna, honesta e insuspeita.
O que impressiona mesmo é o fato de os apóstolos de Jesus Cristo nunca terem recorrido à “imunidade da unção” ao serem acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios crentes. O melhor exemplo é o do próprio Paulo, ungido por Deus para ser apóstolo dos gentios. Quantos sofrimentos ele não passou nas mãos dos crentes da igreja de Corinto, seus próprios filhos na fé? Reproduzo apenas uma passagem de sua primeira carta a eles, na qual revela toda a ironia, o veneno e o sarcasmo com que o tratavam:
“Já estais fartos! Já estais ricos! Sem nós reinais! E quisera reinásseis para que também nós viéssemos a reinar convosco! Porque tenho para mim, que Deus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos, e aos homens. Nós somos loucos por amor de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós ilustres, e nós vis. Até esta presente hora sofremos fome, e sede, e estamos nus, e recebemos bofetadas, e não temos pousada certa, e nos afadigamos, trabalhando com nossas próprias mãos. Somos injuriados, e bendizemos; somos perseguidos, e sofremos; somos blasfemados, e rogamos; até ao presente temos chegado a ser como o lixo deste mundo, e como a escória de todos. Não escrevo estas coisas para vos envergonhar; mas admoesto-vos como meus filhos amados. Porque ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu pelo evangelho vos gerei em Jesus Cristo. Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores” (1 Co 4.8-16)

Por que essa queija de Paulo não se encontra uma repreensão tipo: “Como vocês ousam se levantar contra o ungido do Senhor?”.
Uma vez criticados ou questionados, os verdadeiros ungidos para o trabalho pastoral não reagem silenciando as ovelhas com um mero “Não me toque porque sou ungido do Senhor”, mas com trabalho, argumentos, verdades e sinceridade. “Não toque no ungido do Senhor” é apelação de quem não tem argumento nem exemplo para dar como resposta.


Augustus Nicodemus
Livro: Polêmicas na Igreja
Resumo: pensamentos&teologia
Capítulo 3

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